Sob Efeito da Lua

Olá leitor!

Segue abaixo um interessante artigo publicado na edição de março de 2014 da “Revista Pesquisa FAPESP” destacando que um esticão sutil decorrente da atração gravitacional da Lua gera perturbações na alta atmosfera terrestre, causando com isso interferências nas comunicações por satélites. Diante desse problema um estudo de uma equipe de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) acaba de mapear em escala global as perturbações geradas por esse esticão lunar.

Duda Falcão

CIÊNCIA

Sob Efeito da Lua

Força gravitacional lunar causa perturbações na atmosfera
da Terra, facilitando interferência na comunicação com satélites

RICARDO ZORZETTO
Revista Pesquisa FAPESP
Edição 217 - Março de 2014

© NASA / EARTH OBSERVATORY
Um clássico de 1968: a Terra vista
pela equipe da Apollo 8, a primeira
missão tripulada a orbitar a Lua.
A Lua, o maior objeto celeste próximo à Terra, influencia mais do que o nível dos oceanos. Assim como faz as águas subirem e baixarem ao longo do dia, a Lua também deforma a atmosfera do planeta – bem pouco, é verdade, cerca de 1 metro – e a deixa alongada como uma bola de futebol americano. Esse esticão sutil, decorrente da atração gravitacional lunar, gera perturbações na alta atmosfera que foram agora mapeadas em escala global por uma equipe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). O grupo coordenado pelo físico Paulo Prado Batista usou dados coletados durante 10 anos por um satélite norte-americano projetado para estudar a alta atmosfera da Terra e produziu o mais detalhado levantamento das variações na temperatura a altitudes superiores a 30 quilômetros (km) – três vezes mais alto do que voam os aviões comerciais.

Os pesquisadores verificaram que na faixa que vai dos 30 km aos 110 km de altura – e envolve a estratosfera e a mesosfera, na última estão as temperaturas mais baixas da atmosfera (até 100 graus Celsius negativos) – a temperatura pode oscilar até 8 graus ao longo do dia por influência, em grande parte, da atração gravitacional lunar. A força exercida pela Lua sobre o planeta provoca vibrações nas camadas mais baixas da atmosfera que se propagam para as mais altas na forma de ondas semelhantes às que surgem quando se agita uma corda. Assim como fazem a superfície do oceano oscilar, essas ondas, conhecidas como marés lunares, fazem a atmosfera pulsar. “Nos oceanos, a força gravitacional da Lua se manifesta como uma mudança de altura, já na atmosfera ela altera a temperatura ou a velocidade dos ventos”, explica Batista. Ele e as físicas Inez Staciarini Batista, pesquisadora do INPE, e Ana Roberta Paulino, sua ex-aluna de doutorado no Inpe, apresentaram os detalhes desse mapeamento em dezembro de 2013 no Journal of Geophysical Research.

As variações observadas pelo trio se tornam maiores à medida que se sobe na atmosfera – e atingem o grau máximo por volta dos 110 km de altura, onde o ar é mais rarefeito e a densidade de gases menor. Essas oscilações de temperatura ocorrem em ciclos com 12 horas e 25 minutos de duração, característicos das marés lunares. O período corresponde ao tempo que leva para o planeta dar meia volta em torno de seu eixo e o ponto de sua superfície que estava mais próximo à Lua se tornar o mais distante – tanto a rotação da Terra como a translação da Lua ocorrem no mesmo sentido, embora o movimento da Lua seja mais lento, razão por que esse tempo não coincide com 12 horas. Como a atração gravitacional entre dois corpos depende da distância entre eles, quanto mais próximo da Lua, maior a força e quanto mais distante, menor. Tanto no ponto em que a força é máxima como naquele em que é mínima a atmosfera se esgarça: no primeiro caso, por sofrer um puxão mais intenso e, no segundo, por tender a escapar onde a força é mais fraca. É por causa dessa combinação que a atmosfera ganha a aparência de bola de futebol americano.

O mapeamento do INPE fornece as evidências mais abrangentes de que as marés lunares na atmosfera, de cuja existência já se duvidou, de fato existem e são importantes para conhecer melhor o clima de uma região do espaço habitada por satélites de pesquisa e comunicação.

Quando formulou sua lei de gravitação universal no final do século XVII, o físico e matemático inglês Isaac Newton propôs que, assim como provoca oscilações no nível dos oceanos, a Lua também poderia influenciar a atmosfera, que também se comporta como um fluido. Pierre-Simon Laplace, astrônomo e matemático francês, retomou o tema cerca de um século mais tarde, mas os dados observacionais disponíveis eram insuficientes. Só em 1846 o coronel inglês Edward Sabine publicou as primeiras medições consideradas confiáveis das marés lunares na atmosfera, feitas no observatório da ilha britânica de Santa Helena, próximo à costa ocidental da África. Mas tanto essas medições como as feitas nas primeiras décadas do século XX eram pontuais. Agora, com o auxílio do satélite Timed, se conseguiu coletar informações sobre a estratosfera e a mesosfera numa faixa que se estende da latitude 50 Norte, mais ou menos na altura do Canadá e da Rússia, até a latitude 50 Sul, onde ficam a Nova Zelândia e o sul do Chile e da Argentina.

A propagação dessas marés na atmosfera agita as moléculas dos gases, provocando a mudança na temperatura. Os dados coletados de 2002 a 2012 pelo satélite Timed mostram que as variações térmicas são maiores nos meses de dezembro e janeiro em boa parte da alta atmosfera e menores entre março e maio. Elas também ocorrem com maior intensidade de junho a setembro no hemisfério Norte e em novembro e dezembro no hemisfério Sul. Segundo Batista, essas variações dependentes da latitude já eram bem explicadas por dois fatores: a excentricidade da órbita da Lua (sua trajetória ao redor da Terra não é circular, mas elíptica); e pela influência combinada da Lua e do Sol sobre a temperatura da atmosfera (enquanto a Lua faz a temperatura mudar pela atração gravitacional, o Sol altera a temperatura pela energia que fornece diretamente na forma de radiação).

© NASA
Variação Longitudinal
Um perfil da atmosfera: ônibus espacial
Endeavour 
diante da troposfera
(em laranja), 
estratosfera (em amarelo)
e mesosfera (em azul).
Um resultado, porém, surpreendeu os pesquisadores. Além da variação de acordo com a latitude, eles também observaram variações longitudinais (leste-oeste). Em alguns meses do ano houve picos de flutuação de temperatura nas regiões da alta atmosfera localizadas sobre a Amazônia, a África e o oceano Pacífico. Segundo o físico, algum efeito longitudinal era até esperado, mas não na intensidade observada – como a Terra gira em torno de seu eixo, todos os pontos do eixo longitudinal em algum momento são expostos à mesma força de atração da Lua, o que homogeneizaria essa influência. “Conseguimos separar a influência da componente lunar das demais perturbações na atmosfera”, conta Ana Roberta, atualmente pesquisadora na Universidade Estadual da Paraíba, em Campina Grande.

“Nossos dados indicaram, porém, que as características da superfície do planeta se refletem até alturas muito elevadas”, conta Batista. “A deformação na atmosfera decorrente da atração gravitacional da Lua sofre influência da distribuição dos mares e dos continentes no globo”, explica o físico. Além disso, continua Batista, “vimos que a flutuação no nível dos mares, a maré oceânica, afeta a atmosfera mais do que o esperado”.

As implicações desses achados não se restringem ao plano teórico. Do ponto de vista prático, conhecer melhor as variações de temperatura nessa faixa da alta atmosfera deve permitir a elaboração de modelos mais precisos de como funciona o clima em uma região ainda mais alta – a ionosfera, situada entre 100 km e 1.500 km de altitude –, onde estão os satélites de pesquisa e comunicação e é alta a concentração de partículas eletricamente carregadas. “Para modelar com precisão a ionosfera, não se pode mais ignorar fenômenos como as marés lunares”, afirma Batista.

“Esse mapeamento global do efeito das marés lunares é de grande importância para a previsão do clima espacial”, conta o engenheiro Clezio De Nardin, atual gerente do Centro de Estudo e Monitoramento Brasileiro do Clima Espacial (EMBRACE) do INPE. As marés lunares são um dos três fatores que disparam a formação de bolhas na ionosfera. Os outros dois motivos são: os campos elétricos ao redor do equador e os fenômenos meteorológicos como a formação de nuvens de tempestade, o deslocamento de frentes frias ou ventos intensos na camada mais baixa da atmosfera (troposfera), onde estão 90% dos gases.

Bolhas de Íons

As bolhas são regiões com menor densidade de íons. Elas começam a se formar em geral no início da noite a cerca de 250 km de altura na região do equador magnético da Terra, próximo ao equador geográfico. As marés lunares, explica De Nardin, funcionam como um peteleco que impulsiona o desenvolvimento dessas bolhas que podem alcançar milhares de quilômetros de extensão.

Como são menos densas que o ambiente ao redor, essas bolhas, à medida que crescem, sobem para regiões mais altas da atmosfera e reduzem a concentração de íons na atmosfera superior. Essa mudança na densidade de íons dificulta – e até bloqueia – a passagem das ondas de rádio emitidas pelos satélites de comunicação de baixa órbita, situados a alturas entre 400 e 600 km; pelos satélites do sistema GPS, que estão a 22 mil km de altura; e pelos satélites de comunicação geoestacionários, que orbitam a Terra a 36 mil km de altura. “Quando há bolhas, a comunicação com os satélites é extremamente degradada e até interrompida, às vezes, por horas”, conta De Nardin. Essa interrupção afeta a navegação aérea e marítima, a exploração de petróleo e a agricultura de precisão. “Se nenhuma medida é tomada, ela pode durar o suficiente para um barco em alto-mar se perder ou para romper um duto de uma empresa que faz exploração de petróleo”, exemplifica.

Segundo De Nardin, o mapeamento feito pelo grupo de Batista mostra que os períodos de marés lunares mais intensas coincidem com a temporada de bolhas na ionosfera, que vai de novembro a março. “Esse levantamento nos ajuda a prever e a explicar melhor qual o período em que é mais provável a ocorrência de bolhas”, diz De Nardin. Batista completa: “Não é possível impedir a formação das bolhas, mas se pode ajudar a evitar problemas com os satélites caso se consiga prever com maior precisão quando elas podem ocorrer”.

Artigo científico
Journal of Geophysical Research: Atmospheres. v. 118, p. 13.128-139. 16 dez. 2013.


Fonte: Revista Pesquisa FAPESP - Edição 217 – Março de 2014

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